
CRÔNICA: O CRIME SENSACIONAL
O CRIME SENSACIONAL
(O Crime Pontes Visgueiro, do Maranhão)
Luis Gonzaga dos Reis
O importante trabalho histórico que contém este folheto, fora publicado pelo jornal “Cidade de Pinheiro”, que circula na cidade do mesmo nome neste Estado.
É autor do trabalho o ilustre maranhense Dr. Luis Gonzaga dos Reis, magistrado aposentado, jornalista, grande filólogo e escritor de várias obras valiosas.
Publicando “Cidade de Pinheiro” o fato histórico em referência, em rodapé, dividido em capítulos, apreciável tem sido o número de pessoas que procuram conhecer o “Crime Sensacional”, de que fora autor o desembargador José Cândido Pontes Visgueiro. Daí a razão porque a redação de “Cidade de Pinheiro” resolvera publicar este folheto.
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Luis Gonzaga dos Reis, filho de José Gregório dos Reis e D. Ana Borges Duarte dos Reis, nasceu em São Luís aos 13 de março de 1889, na casa da Rua da Estrela nº 72. Casado com D. Placidina Rocha do Amaral, tem o casal os seguintes filhos: Dr. José Ribamar dos Reis, Dr. Adler Volney dos Reis, Tte. Eldio Comte dos Reis e D. Maria Magdala dos Reis Ponte, casada com o Sr. Eduardo Ferreira da Ponte.
Cursou a Escola de Farmácia do Pará, em 1910, donde se transferiu para a Academia de Medicina do Rio de Janeiro, onde recebeu o grau de Farmacêutico aos 5 de dezembro de 1911. Em São Luís cursou a Faculdade de Direito, onde recebeu o grau de Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais aos 24 de dezembro de 1926.
Secretário do Liceu Maranhense e depois professor de diversas disciplinas no mesmo estabelecimento, assim como na Escola Normal, em virtude de concurso foi provido vitaliciamente na cadeira de Química do Curso Ginasial por decreto de 9 de abril de 1926.
Foi um dos fundadores da antiga Escola de Farmácia do Maranhão, sendo designado para reger a cátedra de Química Orgânica. Foi professor nos seguintes estabelecimentos de instrução: Centro Caixeiral, Instituto Ateniense, Escola Normal Primária, Instituto Almir Nina, Instituto Fernandes, Colégio Maria Auxiliadora, Instituto Gomes de Souza, Instituto Viveiros, Escola Minervas, Ateneu Teixeira Mendes, Instituto Cardoso, Colégio Cisne, etc.
Lecionou Português, Aritmética, Álgebra, Geometria, Trigonometria, Física, Química, História Natural, Higiene e Estenografia.
Foi fiscal do Governo, em comissão, junto aos Serviços de Água, Esgoto, Luz, Tração e Prensa de Algodão, de propriedade do Estado. Juiz substituto do Tribunal Regional Eleitoral, foi depois nomeado Juiz de Direito da Comarca de Alto Parnaíba, donde foi promovido para a de Coroatá, sua comarca atual.
Tem os seguintes trabalhos, muitos dos quais ainda a serem publicados: “Teoria e Prática dos Logaritmos’’, ‘‘A Grande Guerra’’, ‘‘Da Química e sua Evolução (noções históricas)’’, ‘‘A Terra’’, ‘‘Meteorografia’’, ‘‘A Água (estudo geral)’’, ‘‘Os Iones’’, ‘‘Compostos Cianogenados’’, ‘‘Alto Parnaíba’’, ‘‘Religiões, Cultos e Seitas’’, ‘‘Algozes e Vítimas’’, ‘‘O número sete’’, ‘‘O número Pi’’, ‘‘A Linguagem’’, ‘‘O vocábulo eis’’, ‘‘A partícula se’’, ‘‘Funções do Que’’, ‘‘O verbo haver’’, ‘‘O estudo da crase’’, ‘‘Dos acessórios verbais’’, ‘‘Das figuras de palavras’’, ‘‘Dos infinitivos’’, além de diversas monografias sobre Física, Química, Matemática, Português e História.
O Dr. Luis Gonzaga dos Reis, de que demos linhas acima, ligeiros traços biográficos, pertence ao número dos intelectuais, de grande brilho, da atual geração maranhense. O seu retraimento, a sua modéstia, porém, tem concorrido para que o seu nome não realce como deveria acontecer, no ambiente intelectual do momento.
Trata-se de um maranhense de grande ilustração, culto e inteligente, com acentuado pendor para os estudos da ciência, como o demonstra a relação de algumas das suas obras, pois que não estão todas constantes das notas sobre a sua biografia.
Dado, igualmente, às pesquisas da história, o Dr. Gonzaga dos Reis, além da sua notável produção ‘‘A GRANDE GUERRA’’, ainda inédita, escreveu ‘‘CRIME SENSACIONAL’’, um trabalho assaz importante e erudito também inédito sobre o ‘‘CRIME PONTES VISGUEIRO’’, um dos fatos de maior sensação no País, e desenrolado neste Estado, tendo por teatro a nossa cidade de São Luís.
O autor dessa produção se afasta, por completo, do juízo daqueles que vêem no monstruoso delito um resultado de debilidade mental, tendo em vista a avançada idade do desembargador, o principal protagonista da trágica ocorrência.
Mostra, porém, o Dr. Luís Gonzaga dos Reis, no seu apreciável trabalho, que o velho magistrado ágil, no crime, com excesso de malvadez, e conscientemente, com calculada premeditação, possuidor ainda que era de péssimos antecedentes, um indivíduo de tara perigosa.
O trabalho, que vamos publicar a seguir, e graças à gentileza do autor, está a merecer cuidada meditação dos doutos, daqueles que se entregam a complicada ciência da criminologia, tendo em atenção os vários detalhes, que precederam ao crime e os da sua execução.
Com esta publicação, damos mais uma demonstração do nosso esforço no sentido de trazer à lume, para o conhecimento dos maranhenses, fatos ainda pouco conhecidos, ocorridos no Estado, nos tempos idos, e que vão desaparecendo na poeira dos tempos. Pensamos que, agindo dessa forma, estamos cooperando com os estudiosos, que se preocupam com as cousas antigas do Maranhão, ao mesmo tempo que oferecemos um estímulo na história negra do crime Pontes Visgueiro ao estudo da ciência criminológica, e de conseguinte, ao desenvolvimento da cultura e da inteligência dos contemporâneos.
Há, efetivamente, na dolorosa ocorrência relatada pelo Dr. Luís Gonzaga dos Reis, um volume de coisas misteriosas, às vezes incompreensíveis, surpreendentes e inacreditáveis, dadas as condições do talento que emolduravam a cultura do delinqüente.
Esta é, pois, a notável obra, que oferecemos, nesta edição, ao estudo dos nossos leitores, e estamos que todos louvarão esta nossa iniciativa.
Jornal ‘‘Cidade de Pinheiro’’
Pinheiro (MA), 1957
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A crônica “O Crime Sensacional” de Luiz Gonzaga dos Reis é o resultado de uma pesquisa histórica que consumiu muito tempo do pesquisador em busca de informações fidedignas e com detalhes sobre a vida e o crime do desembargador Cândido Pontes Visgueiro, que conheceu em bárbaro assassinato que estremeceu todo o Império.
Luiz Gonzaga dos Reis, magistrado, professor e químico nascido na última década do século XIX *, um homem de elevado conceito moral e profissional, filho do atrevido intelectual abolicionista Gregório dos Reis, homem de vasta cultura humanística.
O autor de “O Crime Sensacional” nasceu e cresceu ouvindo histórias no seio de sua família. O Caso Pontes Visgueiro foi vivenciado pelos seus pais e ouviu na cidade de São Luís muita gente que presenciou o dia 14 de agosto de 1873.
Gonzaga dos Reis, por ser magistrado, não estava preso às paixões da corporação e nem estava imbuído na defesa da classe, por isso mereceu uma atenção especial dos fatos históricos substanciados em provas que desfazia a imagem senhorial quando evidenciou uma biografia com promiscuidade sexual e violenta.
Presume-se que o autor, apesar de sua influência na sociedade maranhense, não pode ver a sua pesquisa publicada em jornais de grande circulação na capital do Maranhão, São Luís, prova que os seus escritos incomodava e feria interesses daqueles que queria conservar a imagem senhorial de Pontes Visgueiro.
A publicação da crônica “O Crime Sensacional”, no jornal Cidade de Pinheiro, em 1957, cuja circulação ficou restrita apenas àquela cidade do interior, uma região das mais pobres do Maranhão, por isso não houve repercussão nos meios acadêmicos e nem no grande público. Por isso permanecera inalterada a visão conservadora e a preocupação de um segmento da sociedade em não desconstruir uma imagem que estava sacramentada no imaginário popular.
Luiz Gonzaga dos Reis retrata o estado de miséria onde foi o nascedouro do crime, da prostituição, da miséria física e moral, o que era São Luís no último quartel do século XIX, muito semelhante ao que o escritor Coelho Neto denuncia em 1898 em sua obra “Lanterna Mágica”: “Nesses cortiços que formam dentro da cidade, pequenos departamentos sórdidos de onde o vício exigia, onde prolifera a infâmia, onde nasce o crime, onde a inocência moral e julgar pelo que vemos diariamente nas ruas – há uma grande escola de miséria, vive oculta, trabalhando clandestinamente na sombra e na lama, a alma perversa e ignóbil de Chopin Trouillejar.” (Coelho Neto, Lanterna Mágica, 1898)
Gonzaga Reis e Coelho Neto fazem uma análise do crime de acordo com a antropologia criminal de Enrico Ferri.
Gonzaga Reis, na crônica “O Crime Sensacional” revela-se o biógrafo mais acurado sobre a vida do desembargador Pontes Visgueiro quando revela a filha que ele teve com uma escrava que recebeu o nome Aristéia, filha das senzalas das Alagoas, chegando a casar com o ilustre desembargador Basílio Torreão. Essa informação é importante porque resgata a miscigenação entre as senzalas de Alagoas e a escol maranhense. Quando acadêmico de Direito do 2º ano conheceu Maria Emília, de família humilde, de cujo relacionamento nasceu uma menina a qual a família não assumiu.
Ainda com uma outra mulher que o biógrafo não identificou, Visgueiro teve um filho que foi criado pelo padrinho, que era Oficial do Exército e veio a falecer, Major, em 1903.
A crônica revela também a busca de tratamento de Visgueiro em Paris com o Dr. Menier, clínico chefe do Instituto Imperial dos Surdos-mudos, que constatou surdez total incurável.
Gonzaga revela o histórico do perfil violento de Visgueiro quando revela os crime, informa-nos que travou uma luta corporal com os soldados quando pretendia seduzir a amante causando grande escândalo, andava sempre armado de faca, sendo temido pelos seus colegas por ser avalentoado. Apedrejou a casa da baronesa de Santos quando a mesma dava uma festa quebrando as janelas. Uma outra informação surpreendente é que Visgueiro, na qualidade de juiz na cidade de Alagoas, emigrou para uma pequena cidade dos sertões cearenses por estar envolvido em um assassinato, as imunidades fez-se silêncio. Geralmente o magistrado começa sua carreira no interior e chega à capital, mas Visgueiro inverteu a ordem, foi da capital para o interior.
* Gonzaga aponta como chifrins outro objeto de libertinagem aonde aflui a escória da sociedade, os despossuídos e marginalizados e também os bailes do beco escuro, os fandangos do João Enxova e outros bordéis. Constituía-se a área de delinqüência de São Luís
O Crime Sensacional que constitui num tratado clássico e registra a mais completa biografia do desembargador, além de reunir informações preciosas sobre o bárbaro assassinato da amante Maria da Conceição. Luiz Gonzaga reconstrói todo o labirinto do crime e revela a inteligência maléfica com que se municiou para arquitetar e cumprir passo a passo, auxiliado por criminosos remunerados, a sua alma criminosa que figurou na época num dos atos mais violentos de que se teve notícia na história do Brasil.
A crônica “O Crime Sensacional” denuncia a alastrada e permitida prostituição em São Luís, capital da província do Maranhão, considerada uma escola de miséria, prostituição e de indigentes sociais.
O autor descreve Maria da Conceição como uma pobre menina do interior da Província do Maranhão que chegou a São Luís em busca de sobrevivência carregada de sonhos, encontrou na venda do corpo a falsa ilusão de viver em mundo melhor. Graças aos seus dotes físicos, a ingênua menina do interior se transformava em prostituta de luxo, status por ser amante de um desembargador do Tribunal da Relação do Maranhão. Maria aprendeu rápido a arte de seduzir e manter os homens a preços afortunados aos seus caprichos.
Teria razão Coelho Neto ao dizer: “Era uma maravilha. Uma dessas criaturas que tem o dom de fascinar. Tinha um prestígio erótico que lhe saía do carbo de toda ela: das formas graciosas, da ondulação dos gestos, do olhar macio e quebrantado, do sorriso que se lhe abria na boca vermelha, conta como o alvorecer de um dia de maio, da voz morosa e cheia e possuía isso que chamamos dengue, filtro de volúpia e que dificilmente se resiste e ele é o segredo misterioso de certas mulheres fatais que, às vezes, não sendo belas alucinam.” No entanto no seu corpo habitava uma alma de criança que apenas buscava no dinheiro e no luxo um suporte para seus sonhos de liberdade. Na orgia, nas festas ela preenchia suas necessidades de gente. Assim como Tiradentes foi preso e condenado à forca e seu corpo dilacerado por causa dos ideais de liberdade, Maria da Conceição, magicamente, também teve em sua prematura morte a causa do sonhar ser livre e seu carrasco era o seu amado e vestia o manto da justiça; e Maria, o manto de mártir do seu múnus.
Em outubro de 1872 encontra Maria da Conceição na tradicional festa de Nossa Senhora dos Remédios quando ele a encontrou com o alferes Tomaz Meireles. O autor revela o medo que a Mariquinha passou a ter do Visgueiro quando disse: “Não vou mais à casa do desembargador porque tenho medo dele após o que aconteceu no dia 10, quando a encontrou com um estudante agredindo os dois.”
O perfil violento também foi denunciado por Luiz Antonio Vieira da Silva outros atos de violência praticada na cidade de São Luís, assunto este tratado no capítulo “A Ética na Magistratura na Época Imperial no Brasil.”
Gonzaga Reis foi enfático a dizer: - Assim iniciara a vida praticando um crime haveria dela sair pela prática de outro, espetacular e horripilante que lhe maculou perenemente a memória.
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O CRIME SENSACIONAL
Luís Gonzaga dos Reis
São Luís do último quartel do século transacto foi palco de um dos mais brutais dramas sanguinolentos de que se tinham até então ocupado as crônicas criminológicas do país, o qual deixou atônita a burguesa sociedade da época, já pelos lances apavorantes da cena, já pelo principal protagonista do elenco criminal, tomado dum desvario inconcebível, gerado por anacrônico amor.
Um velho magistrado, encanecido na arte de julgar, precipitado no báratro da delinqüência, nivelado aos mais cruéis celerados, corolários de incontida perversidade e abjeta degradação moral, torna-se autor de nefando crime cortejado de horrores, que lhe deixou a memória para sempre agrilhoada à história da criminalidade.
Traços biográficos do delinqüente desembargador
José Cândido de Pontes Visgueiro nasceu em Vila de Maceió, da comarca de Alagoas, pertencente à província de Pernambuco, aos 13 de outubro de 1811. Foram seus pais Manuel do Nascimento Pontes e Adriana Maria Pontes. A imitação do que usaram fazer muitos patriotas após as lutas da Independência, juntou ele ao seu patronímico o agnome Visgueiro, com que se haveria de tornar tão tristemente célebre.
Ao seu pai, antigo lavrador escravocrata, depois funcionário público, tesoureiro da Alfândega de Alagoas, abastado de recursos e político influente, fácil foi conseguir para o filho o ingresso na política e na magistratura.
A sua ilustre família o havia destinado à cleresia, fazendo-lhe, para isso, ingressar em 1828 no Seminário de Olinda. Temperamento ardente, caráter impulsivo, gênio irascível, não suportou por muito tempo a vida monástica: era preciso dar largas a seus hábitos dissolutos, expansão a seus costumes licenciosos, de useiro freqüentador de bordéis. Em 1830 matricula-se na Faculdade de Direito de Olinda, donde se transfere para a de São Paulo, para ali concluir o curso jurídico, em outubro de 1834.
Quando acadêmico, no seu 2º ano, enamora-se da jovem Maria Emília, pertencente a modesta família, de cuja intimidade resultou o nascimento de uma menina que tomou o nome materno, em 1831. Pretendeu reparar a falta cometida, mas a sua família se opôs formalmente ao casamento, apesar de haver ele manifestado desejos de realizá-lo, fato esse que lhe motivou a transferência para o sul. Em virtude da sistemática oposição à realização do casamento, a criança é-lhe entregue, sendo por ele colocada na Roda dos Enjeitados, em Recife, donde a retirou 7 anos depois, para levá-la aos pais, que a educaram com esmero e cuidado, sem que contudo viesse ser reconhecida, casando-a com o professor Camilo Pereira da Costa, em Maceió, cerca do ano de 1854.
Teve, com outra mulher, ainda um filho, a que não reconheceu, de nome Manuel Pontes Visgueiro, que foi criado pelos padrinhos, e que veio a falecer major do Exército em Manaus, em 1903.
Celibatário, exercitou sempre amores fáceis, até mesmo quase senil, graças à vida folgada que desfrutava, conquanto irregularmente, em conseqüência da sua criação num ambiente de senzala, que cedo o fez entregar-se a desregramentos libidinosos, tendo com uma escrava uma filha que na pia batismal recebeu o nome de Aristéia, em 1833. Cuidadosamente criada por seus pais, teve-a depois sempre em sua companhia, dando-lhe esmerada educação. Reconheceu-a por escritura pública, sendo a única contemplada no seu testamento. Com ela viveu até que a casou, em São Luís, em 1863, com o desembargador Basílio Quaresma Torreão, fiscal adjunto do Tribunal do Comércio do Maranhão e que havia sido seu colega, como deputado geral, na legislatura de 1838 a 1841.
Surdo-mudo até a idade de 5 anos, em conseqüência duma febre maligna que o prostrou, quando contava apenas 18 meses de existência, fica restabelecido, para tornar a ensurdecer, dez anos depois, em seguida a outra febre exantemática, de maneira definitiva. Ainda conseguiu, durante algum tempo, ouvir, porém mal, para ir gradativamente piorando, até ao completo ensurdecimento.
Em 1859, a conselho médico do irmão, Dr. Manuel Adriano da Silva Pontes, vai a Paris, onde este se encontrava, a fim de submeter-se a tratamento, ficando sob os cuidados do Dr. Menier, clínico chefe do Instituto Imperial dos Surdos-Mudos, especialista no assunto, constatando-lhe a facultativa surdez total incurável.
Certa vez, na capital paulista, ainda acadêmico, travou luta corporal com um soldado, de quem pretendeu seduzir a amante, caso que causou grande escândalo. Andava sempre armado de faca, sendo temido por todos os colegas, por ser avalentoado. As suas proezas e aventuras fizeram época. Trazia consigo, e mesmo em casa conservava sobre a mesa de trabalho, uma faca-punhal, declarando a sua testemunha de defesa, Dr. Affonso Saulnier de Pierre Levée, em depoimento, que, havendo lhe perguntado por que usava tal arma, respondera: “Sou surdo, e tenho o hábito de assim conservá-la desde que ensurdeci, e por temer ser atacado não estando prevenido”.
Por ocasião dum baile dado em casa da Marquesa de Santos, na Paulicéia, a Rua do Carmo, auxiliado por um grupo de moleques, apedrejou o rico palacete, quebrando as vidraças das janelas do beco, do lado do colégio.
Contava José Ribeiro do Amaral, historiógrafo maranhense, que, logo em seguida ao crime, antes de ser descoberto, voltando ele e o seu amigo Amâncio, cerca da meia-noite, duma festa, foram agredidos por Guilhermino, armado de faca, a mandado de Pontes Visgueiro, no Campo de Ourique, hoje Parque Urbano Santos, nas proximidades do Quartel do 5º Batalhão da Infantaria, atualmente desaparecido, onde se refugiaram, sendo-lhes oferecida, pelo oficial de estado, as necessárias garantias de vida.
Emigrou do seu estado natal por estar comprometido num assassínio, sobre que foi feito silêncio. Assim, iniciara a vida praticando um crime, haveria dela sair pela prática de outro, espetacular e horripilante, que lhe maculou perenemente a memória.
Membro de conceituada família, foi rápida a sua carreira, na política e na magistratura. Ainda acadêmico, tem assento na Assembléia Provincial, sendo depois deputado geral em duas legislaturas sucessivas, em 1838 e em 1842, até à dissolução da Câmara, dois anos mais tarde, durante a atormentada regência Araújo Lima. Juiz municipal em 1837, torna-se juiz de Direito da comarca de Maceió, em 1838, exercendo a judicatura em sua terra cerca de dez anos, donde é removido, a pedido, em 1848, para a de Paranaguá, na província do Piauí, onde, também, exerceu a magistratura até 1857.
Por Carta Imperial de 3 de fevereiro de 1858, é nomeado desembargador da Relação do Maranhão, tomando posse do cargo a 6 de março do mesmo ano, sendo removido para o Tribunal do Comércio, por haver, em conseqüência da surdez, requerido aposentadoria, que lhe foi negada pelo ministro da Justiça, Visconde de Niterói, Francisco de Paula de Negreiro Sayão Lobato, seu particular amigo e antigo condiscípulo, que, em carta de 3 de novembro de 1861, o convidou para desempenhar as funções de Fiscal, cargo que exercia quando cometeu o nefando crime, que o expôs à execração nacional.
Como magistrado, recebeu referências elogiosas dos presidentes da província, o desembargador Anselmo Francisco Peretti, em 24 de dezembro de 1849, e o conselheiro José Antônio Saraiva, em 1º de março de 1853, por sua louvável atuação na judicatura piauiense.
O desembargador Manuel de Cerqueira Pinto, presidente do Tribunal do Comércio, atestou ter ele sempre exercido os cargos de adjunto e de fiscal com inteligência e probidade.
O conselheiro Bandeira de Mello, que com ele privou, reconheceu-lhe, a par da irritabilidade nervosa, dotes pessoais, com variada cultura jurídica e literária, e o professor Manuel Inácio de Carvalho atestou, por conhecimento próprio, ter ele sido aluno aplicado e de bons costumes.
O velho magistrado, levado por desvairada paixão, que lhe aniquilou o senso moral, resvalou-se impudentemente na prática dos atos dissolutos, perdendo por completo o respeito de si mesmo, sem atender ao decoro exigido pela elevada posição social e avançada idade.
Andava com a amante em pleno dia, publicamente, pelas ruas mais concorridas da cidade: acompanhava-a às lojas visitada pelo escol e também às tavernas freqüentadas pela ralé. Chegou ao ponto de lhe fazer companhia até nos chinfrins, antros abjectos da libertinagem, para onde afluía a escória da sociedade, a patuléia da capital, vagabundos e meretrizes.
Os garotos da rua, por vezes, vaiaram-no e apedrejaram-no nas suas constantes exibições escandalosas, ao que diziam ser por insinuações da própria amante, que o detestava, para dele livrar-se suportando-o por mera conveniência, em atenção aos reclamos do proxenetismo materno. Estudantes escreviam o seu nome nas paredes e muros, aludindo a seus amores.
Seresteiros, nas noites enluaradas, faziam serenatas na esquina da sua casa, cantando poesias amorosas dedicadas à sua amada, como escárneo à sua pessoa. Versos chulos, que o metiam a ridículo, eram recitados como glosa aos seus descabidos amores, por toda a cidade. É que sua pessoa, longe de infundir o respeito devido, era tomada para zombarias e motejos.
Numa noite de outubro de 1872, da tradicional festa de Nossa Senhora dos Remédios, o mais pomposo e concorrido festejo da época, a que comparecia o que de mais luxo e elegância havia na cidade, o velho magistrado encontra a amante em colóquio amoroso com um oficial do Exército, alferes Tomás Meireles. Exasperado, atira-se contra o militar, armado de bengala, mas este, prudentemente, foge. Comentários os mais desconcertados foram feitos por toda a cidade, ávida de escândalos. Maria da Conceição, apavorada, pernoita fora de casa, onde passa a noite, aguardando a sua chegada, o ciumento amante.
Para vingar-se da afronta, encarrega o tenente Antônio Feliciano Peralles Falcão, seu particular amigo, de arranjar um capanga para aplicar na amante infiel uma surra, incumbência de que nunca se desobrigou, conquanto se utilizasse, para isso, largamente da bolsa do sanguessedento magistrado.
Nessa altura, a família e os colegas intervieram, conseguindo que ele fosse passar algum tempo, em gozo de licença, no Piauí, em sua antiga comarca, onde outrora residiu durante anos com a sua filha única e era bastante relacionado, para desvanecer-se dos intentos licenciosos e ridículos, esquecer-se, ao fim dos reprovados amores...
Aprazada a viagem, parte no dia 8 de abril. Em lá chegando vai morar na mesma casinha de dois vãos, sua antiga residência, por ele mandada construir, da qual ainda se vêem os restos, no alto da colina, à vista da cidade, envoltos em carrascos de macambira, num lugar quase inacessível, a afrontar a ação devastadora do tempo, após quase um século.
A recordação do passado, algo distante não consegue fazê-lo esquecer o presente, debelar a paixão desvairada que lhe torturava a alma delirante, nem evitar a explosão sanguinária do seu ódio vingativo.
Dura somente quatro meses a sua ausência, que se lhe afiguraram quatro longos anos, não conseguindo, por isso, permanecer por mais tempo distante da mulher de que se queria vingar, por incontidos ciúmes. Volta, então, para dar curso à sua psicose mórbida, chegando a São Luís aos 30 de julho.
A vítima, sua índole corrompida, hábitos e vícios
Maria da Conceição, assim chamada, cujo nome é Maria José de Carvalho, raparigota meio púbere, filha sem pai no assento do batismo, usava apenas o apelido materno, mas vulgarmente era conhecida por Mariquinha Devassa, agnome que condizia com a ardência da sua índole corrompida, licenciosa de costumes.
Filha do interior, nascida na cidade do Rosário, veio para a capital como mercadoria a ser colocada e explorada precocemente pela própria genitora, como quem repartia os pingues proventos do torpe comércio, pois cedo se entregara à prostituição, graças aos encantos dos dotes físicos e à carência de escrúpulos morais.
Chegada à capital, foi morar nas alfúgeras da cidade, residindo em bairros esconsos. Menina e moça ainda mendigava perambulando pelas ruas e praças mais freqüentadas, permitindo a fatalidade que fosse vista, pela primeira vez, por Pontes Visgueiro, a esmolar-lhe à porta, começando as relações amorosas em fins de junho de 1872, logo depois de ir à casa pedir um auxílio pecuniário.
Nesse ambiente de misérias e de torpezas ela cresceu, sem ter tido tempo de tornar-se mulher. Fora sempre infeliz a pobre jovem desde a infância, para, finalmente, vir a morrer de maneira trágica, quando ainda iria viver uma vida de incertezas e de agruras.
Feições delicadas e simpáticas, cor branca, cabelos negros, lisos e compridos, estatura mediana, corpo regular, algo robusta, admiravelmente correta de formas, era um tipo feminino de aprimorada beleza, em pleno viço das suas risonhas primaveras.
Analfabeta, tola e rude, criada e educada num meio de devassidão e de vícios, constituía ela própria um complexo de taras e de defeitos.
Dotada de gênio alegre e folgazão, vivia sempre em companhia de estudantes e caixeiros. Freqüentava assiduamente os bailes do Beco Escuro, os fandangos do João Enxova e outros bordéis.
Detestava o incômodo amante — surdo, grosseirão, já no ocaso da virilidade, arranjado por indústria pela mãe proxeneta, o qual lhe inspirava instintiva repugnância, mas o suportava, por conveniência, porque era ele quem lhe pagava a casa, dava alimentação, roupas, jóias e até luxo, em suma, satisfazia-lhe todas as exigências e caprichos, procurando, para ser-lhe agradável, adivinhar-lhe os pensamentos, enquanto que ela só se lembrava dele para extorquir dinheiro, para explorá-lo descerimoniosamente.
Ana Rosa Pereira, uma das testemunhas do ruidoso processo, que pernoitou certa vez em sua companhia, em casa do amante, contou tê-lo visto vagando, na calada da noite, por vezes ajoelhar-se demoradamente junto ao leito dela, para contemplar-lhe, extasiado, as formas esculturais, em ânsia voluptuosa.
Fosse ela ponderada e conseqüente, teria adquirido estado, casando-se com o velho amante, conforme seu manifesto desejo, porquanto mais de uma vez já lhe havia dito: “Filha, conserva-te por uns dias, que eu me caso contigo”. A sociedade, apesar de ciosa em preconceitos, dentre em breve se esqueceria do seu passado irregular: abrir-se-lhe-iam as portas dos salões familiares para recebê-la reabilitada, passando então a merecer consideração e respeito.
No mesmo dia do regresso do Piauí procurou Pontes Visgueiro a impudente amante, e com ela pernoitou em sua residência, à Rua de São João nº 2, hoje Rua 13 de Maio nº 124, quase esquina do Beco do Prego, um sobradinho de azulejo de um andar, com quatro janelas de sacada e o mesmo número de portas no pavimento térreo, na época, hoje duas das quais estão substituídas por janelas de peitoril, ditando os fundos para as praias do rio Anil, onde, dias depois ter-se-ia de desenrolar a impressionante tragédia passional. A porta e a janela a ela sobreposta, que ficam à direita, são destacadas do corpo da casa: a porta pertence ao quarto que se comunica com o prédio ao lado, enquanto que a janela pertence à saleta onde se consumou o monstruoso crime, a qual se liga com o corredor por uma porta que lhe franquia a entrada da casa residencial.
O velho magistrado procura inspirar confiança à jovem amante, enquanto preparava os elementos materiais para a execução do crime. Finge ter esquecido o incidente com o militar a fim de se normalizarem as relações, como se nada houvesse ocorrido, mas não passam muitos dias e ela novamente é apanhada em flagrante, praticando uma nova leviandade, no dia 10 de agosto, em casa de Ana Rosa, desta vez com um estudante de humanidades, aluno do colégio da Imaculada Conceição, o seu amante predileto, rapazola elegante de nome Joaquim Maria Pinheiro Costa, incorrigível boêmio, que se tornaria depois acadêmico crônico de direito, até que chegou a bacharelar-se, vindo advogar nos auditórios do Rio de Janeiro.
Era pouco mais de 1 hora da tarde quando Pontes Visgueiro penetra bruscamente na casa. Maria da Conceição, avisada pela amiga, ouve a voz do amante, que bate fortemente na porta do quarto à sua procura. Amedrontada, esconde-se debaixo da cama, donde é por ele convidada amavelmente a sair, a fim de não ficar resfriada, devido à umidade do chão, no que não foi obedecido, por estar completamente despida, enquanto que o jovem corre para o quintal. Pontes Visgueiro vai buscá-lo pelas orelhas, mas fato estranhável para os jovens amantes, apenas o aconselha paternalmente e se retirar.
Familiar do crime, soube o facínora dissimular as suas intenções homicidas, dando mostras de haver desculpado mais uma falta, que seria a última, quando na realidade premeditara pôr-lhe termo, de maneira decisiva e brutal.
Receosa de alguma cilada por parte do velho amante, cujos instintos perversos a faziam temer, Maria da Conceição muda-se temporariamente de residência, da Rua de Sant’Ana para a casa da sua amiga Tereza de Jesus Lacerda, à Rua de Santo Antônio, dizendo a Ana Rosa: “Não vou mais à casa do desembargador, porque tenho medo dele, depois do que aconteceu no dia 10”, afirmando que não mais queria saber dele.
Preparativos sinistros e execução do crime perpetrado com requintes de perversidade
Pontes Visgueiro, revolvendo as taras avoengas, põe em execução o plano sinistro calculadamente traçado: manda preparar dois caixões, que lhe são entregues no dia 7, um de cedro, pelo carpinteiro Boaventura Ribeiro de Andrade, medindo 110 centímetros de comprimento por 40 centímetros de largura e 30 centímetros de altura, pintada de branco, com alças de ferro, e outro de zinco, pouco menor, pelo flandeiro Antônio José Martins de Carvalho, pelo preço de 18$640. Dá a afiar um trinchete ao tangedor Guilhermino de Sousa Borges, indivíduo afeito ao crime, por ele trazido de Teresina especialmente para esse fim, quando de volta a São Luís, mediante a paga de uma quantia de 100$000.
Prepara, ele mesmo, uma máscara de pano preto, para o seu auxiliar, e manda pedir, pelo escravo Luís, trazido também dessa capital, onde o adquiriu por arrematação, um pouco de cal, da que estava sendo utilizada numa obra da vizinhança, a José Maria da Cunha, morador no pavimento térreo. Na capital piauiense obteve mais uma libra de clorofórmio, conforme ficou apurado pela polícia local.
Tudo calculadamente conseguido, nos seus menores detalhes, para êxito seguro da empresa, como fogareiro, carvão, ferro de soldar e até diversas travessas de madeira para firmar o caixão de zinco dentro de madeira, em conseqüência do entumescimento provocado pelo desprendimento dos gases, devido à decomposição cadavérica, vai no dia 11, às 10 horas da noite, à casa de Adozinda Avelina Belleza, onde encontrou Maria da Conceição deitada numa rede, fingindo dormir. No dia seguinte volta a procurá-la e a encontra jantando. Convida, pede para passar a noite com ele, mas ela obstinadamente se recusa, declarando-lhe não querer mais saber dele, pedindo-lhe que a abandonasse de maneira decisiva, visto que ele por mais de uma vez lhe haver advertido, em dizendo à sua genitora que a sua “vida estava nas suas mãos, logo que ela o desprezasse”.
Quinta-feira, 14 de agosto de 1873. A um novo convite, mais insistente, recebido pela manhã, resolve comparecer à entrevista, embora assaltada por fatal pressentimento. Por precaução, faz-se acompanhar de uma pessoa da amizade, a sua comadre Teresa de Jesus, com quem estava hospedada desde o caso do estudante.
Maria da Conceição apresenta-se trajando modesto vestido de casa, branco chitado, trazendo como enfeite uma fita estreita de veludo preto a circundar-lhe o pescoço, adorno que lhe dava fascinante donaire aos encantos naturais das suas quinze primaveras.
Era cerca de 2½ horas da tarde quando as duas jovens amigas se apresentaram na residência de Pontes Visgueiro. O facínora as recebe atenciosamente na varanda, onde as serve de doces e de vinhos.
Entrementes, desce as escadas e vai avisar o comparsa Guilhermino para preparar-se a desempenhar a missão que lhe fora confiada e dizer-lhe: “A mulher está aí; acompanha-me”, o que foi feito cautelosamente.
As visitantes pretendiam retirar-se, mas o covarde assassino pede delicadamente à infeliz vítima para demorar-se um pouco, pois na saleta contígua no corredor havia um dado para ela, enquanto que insiste persuasivamente para a companheira retirar-se, dizendo: “Teresa, vai, e logo mais vem buscar a tua comadre”.
Embalde Maria da Conceição fazia sinais à amiga para não se retirar deixando-a a sós, com olhares significativos ou tocando-lhe levemente no vestido, mas tudo se passou despercebido. A aflição fê-la esquecer-se de que o réprobo era totalmente surdo, sendo fácil a exposição verbal das suas apreensões.
A jovem decaída, curiosa e interesseira, vencendo aos próprios escrúpulos e receios, penetra no aposento, onde, em vez do presente anunciado, vai encontrar a morte, de modo trágico e traiçoeiro. Entra atônita e senta-se desconfiada num baú, quando Guilhermino, que a espreitava, escondido atrás da porta, rosto oculto na máscara, súbito atira-se contra ela: agarra-a pelas costas, fá-la dobrar pelas espáduas e cair sobre o baú. Debalde procura livrar-se do sicário, tentando gritar por socorro. Morde-lhe os pulsos vigorosos, mas neste instante o perverso magistrado aproxima-se trazendo entre os dentes um vidro contendo clorofórmio e nas mãos uma toalha que, ensopada com o narcótico, lhe é aplicada nas narinas, fazendo-a perder, por momentos, os sentidos.
“Meu bem, não me mates”, implorava-lhe Maria da Conceição, ao que Pontes Visgueiro, que era duplamente surdo – fisiologicamente, pelas sensações óticas, e psiquicamente, por obliteração às razões da consciência — vociferava: “Não te dizia sempre que me havias de pagar?”
O assassino pisa-lhe a perna direita com o pé esquerdo e prende a outra perna com os joelhos. Assim subjugada, morde-lhe a face lívida e os seios túrgidos, vibrando, ainda, no corpo inerte, duas profundas punhaladas, uma no peito e a outra no coração, golpeando depois o cadáver no estômago e no fígado, já mutilado e colocado no caixão. Após a perpetração do brutal assassínio, friamente praticado com requintes horripilantes, Pontes Visgueiro, auxiliado pelo comparsa, deita o cadáver sobre o capote do seu uso, para esse fim colocado no chão, e desarticula-lhe as pernas, corta-lhe circularmente o pescoço, que fica ligado apenas pela coluna vertebral, permitindo assim a cabeça pender sobre as espáduas, dobrada para o ombro esquerdo; amarra o pé direito com corda de sedenho até fazê-lo voltar sobre a coxa, ficando a perna esquerda dobrada sobre a nádega e a direita sobre o peito, desarticulada pelo joelho.
Terminada a faina macabra, Pontes Visgueiro, auxiliado sempre por Guilhermino, depõe os membros mutilados da infeliz moçoila no caixão de zinco contendo cal e os recobre com um jornal, que serve de mortalha aos despojos. Em seguida, manda lavar o assoalho, que é enxuto com a sua própria camisa. Durara menos de uma hora o criminoso trabalho.
Teresa de Jesus volta, cerca de 4 horas, em procura da amiga. O preto Luís informa-lhe que o desembargador havia saído e que Mariquinha há muito que se tinha ido embora, mas na porta, postado à sua espera, estava o morador do andar térreo, que lhe afirma não ter a sua amiga ainda saído, mas que ele havia notado um barulho esquisito no andar superior, com desusado movimento de vai-e-vem.
Pontes Visgueiro veste-se esmeradamente, manda chamar um carro de aluguel e sai calmo, despreocupado, para ir tomar parte numa festa íntima na casa de seu genro, à Rua de Sant’Ana nº 128. Ao chegar, abraça carinhosamente as suas netinhas — Maria Raimunda, Maria Antônia e Maria Altina, sem dar largas às suas habituais expansões.
Presidindo ao jantar, em que tomaram parte o Dr. Sylvino Elvidio Carneiro da Cunha, presidente da Província e muitas outras pessoas gradas, à sobremesa foi-lhe levantado um brinde de honra, como saudação à sua veneranda personalidade, modelo de juiz íntegro e magnânimo...
De volta à casa, já tarde, cerca de 10½ horas da noite, encontra à sua espera, sentadas defronte da porta, as mulheres Adozinda, Teresa de Jesus e Luiza Sebastiana de Carvalho, que, bastante aflita, lhe pede notícias da filha desaparecida. Tranqüilamente responde o facínora que ela havia se retirado às 2 horas, logo depois de haver saído a sua amiga de quem se fez acompanhar, tendo-lhe ele dado, nessa ocasião, a quantia de 5$000 a fim de ela comprar fitas para a festa de São Manuel.
A sua atitude serena inspirou confiança à pobre mulher, que se retirou, apesar disso, um tanto apreensiva.
Após esse incidente, sobe resolutamente as escadas em companhia do seu particular amigo e compadre, a quem havia mandado chamar, o ourives Amâncio José da Paixão Cearense, proprietário duma loja de jóias à Rua Grande, nº 10, pai do inspirado poeta conterrâneo Catulo da Paixão Cearense, diante do qual se prostra, genuflexo, a pedir que o salvasse da embaraçosa situação em que se encontrava, de encobrir o crime. Amâncio, ante os insistentes apelos invocados à sua velha amizade, resolveu soldar o fatídico caixão de zinco, onde se achava depositado o corpo de Maria da Conceição, cruelmente sacrificada à vida, com excessiva perversidade.
Pontes Visgueiro pensou, a princípio, mandar jogar o comprometedor caixote ao mar, em horas adiantadas da noite, pois a sua casa, deitando os fundos para a praia, ser-lhe-ia fácil o desempenho da perigosa tarefa, mas resolveu guardá-lo em casa, postado no armário entre os seus livros, onde não era fácil ser visto, para levá-lo consigo na viagem que resolveu empreender em Maceió, daí a meses, quando, então, seria o inconveniente fardo atirado n’água, desaparecendo, assim, os vestígios do nefando crime.
A decomposição cadavérica fê-lo, porém, mudar de resolução: ajudado por Guilhermino e por Luís, que abriu a cova, pelo que é liberto no dia 17, por serviços prestados, aproveitando o escurecer, enterram o caixão, que já se achava depositado no quarto contíguo à sala de jantar do andar térreo, desde o dia imediato, sexta-feira, com a tampa para baixo, por estar tumefacto, fazendo plantar no local alguns arbustos, arrancados alhures.
A ação da polícia, diligências, inquéritos e prisões
Ficando averiguado que Maria da Conceição não se encontrava no Cutim, nem tampouco tinha viajado para Belém, como a princípio havia a suposição, em face das freqüentes denúncias apresentadas por Teresa de Jesus, amiga íntima da vítima, a quem fizera companhia à casa de Pontes Visgueiro, o Chefe de Polícia, Dr. Miguel Calmon du Pin e Almeida, colateral homônimo do marquês de Abrantes, ante as suspeitas despertadas, levando em consideração os antecedentes do famigerado magistrado, resolveu dar pessoalmente busca na casa às 6½ horas da manhã do dia 18, tendo mandado proceder a rigoroso cerco de toda a quadra durante a noite anterior, pela polícia.
Foi fácil encontrar o caixão, por ter sido enterrado junto à escada que deita para o quintal, por estar a terra que o cobria de fresco revolvida e os arbustos recém-plantados, emurchecidos.
Vendo-se descoberto, aponta para o local, algo perturbado, e diz às autoridades: “Ela está aí!”, acrescentando, depois, meio irritado: “Se cem vidas ela tivesse, a todas eu tiraria”.
O caixão com o corpo de Maria da Conceição é conduzido num carro à Santa Casa de Misericórdia, onde é reconhecido, sendo feita a necrópsia pelos médicos Antônio dos Santos Jacintho, José Ricardo Jauffred, José Maria Faria de Matos e Júlio Mário de Serra Freire, com a assistência dos Drs. Augusto Teixeira Belfort Roxo, Amâncio José de Oliveira Azevedo e Fábio Augusto Bayma.
Os cúmplices são imediatamente recolhidos à prisão, ficando incomunicáveis, mas o principal responsável, dadas as suas imunidades, ficou apenas vigiado, por só poder ser preso por mandado expedido pelo presidente do Supremo Tribunal de Justiça, ex-vi do artigo 164, parágrafo 2º da Constituição do Império e artigo 13, parágrafo 2º da lei da Reforma Judiciária de 1871.
A imprensa indigna, especialmente “O País”, verbera pelo fato de ainda estar em liberdade o autor do monstruoso crime, quando o flagrante delito foi manifesto, alegando que a lei é comum para todos, pobres e ricos, grandes e pequenos. A notícia propaga-se célere pela cidade, ocorrendo ao local considerável número de curiosos, para tecerem comentários em torno do fato delituoso.
A aglomeração sempre crescente pelo movimento geral de horror e de indignação, dá azo a que os mais exaltados, em duas investidas, apedrejem a casa, quebrando as vidraças, ameaçando, nos seus excessos, lapidar o morador. Para evitar a sanha da população enfurecida, e também prevenir a possível fuga do assassino, escudado nos seus privilégios, foi postada permanentemente uma guarda de seis praças devidamente embaladas, sob o comando de um oficial.
Por duas vezes o Chefe de Polícia, que se fez acompanhar do Delegado do 3º Distrito, Dr. Tibério César de Lemos, e um amanuense de cada vez, foi à casa do assassino, nos dias 18 e 19, para reduzir a termo o seu depoimento, mesmo sob protestos, mas Pontes Visgueiro recusou-se terminantemente a prestá-lo, invocando as suas prerrogativas.
E em resposta ao ofício de 20 de agosto em que o Chefe de Polícia o convidava a comparecer à Secretaria a fim de ser interrogado sobre o crime que lhe era atribuído, o homicida em respostas no dia 21, declara que nem Amâncio José da Paixão Cearense nem Antônio Feliciano Peralles Falcão tivera qualquer participação direta ou indireta no assassínio de Maria da Conceição, e, de acordo com o testemunho dos amanuenses da Secretaria de Polícia, que acompanharam o Dr. Pin e Almeida nas diligências, Mariano José da Cunha e José Augusto Gromwel, Pontes Visgueiro se reconheceu culpado, dizendo que “nunca mais vestiria a sua beca, nem se sentaria ao lado dos seus colegas para julgar a quem que fosse...”.
Ao desembargador Basílio Torreão, que atendendo ao chamado do seu sogro foi à sua casa acompanhado dos Srs. Ricardo de Sousa Dias e Inácio Frazão da Costa, seus genros, e do Dr. Francisco Gaudêncio Sabas da Costa, todos testemunhas do rumoroso processo, dizem ter ouvido Pontes Visgueiro dizer: “Não me toque, que sou indigno de apertar a mão de um homem de bem”.
Raimundo, escravo de Pontes Visgueiro, em seu depoimento informou que ouviu o seu senhor contar ao desembargador Basílio Torreão que ele havia apunhalado a Maria da Conceição.
Aos 20 de agosto apresentava o Dr. Pin e Almeida o seu primeiro relatório, providenciando para que os autos, em original, fossem enviados ao Supremo Tribunal de Justiça e o respectivo traslado fosse remetido ao Dr. Juiz de Direito do 3º distrito criminal de São Luís.
No dia 26, após doze dias de consumado o ruidoso crime, o Dr. Pin e Almeida apresenta o seu segundo relatório, que, enviado ao Dr. Presidente da Província, este o remeteu por intermédio do ministro da Justiça, Dr. Manuel Antônio Duarte de Azevedo, ao presidente do Supremo Tribunal de Justiça, o ministro Joaquim Marcelino de Brito, que designa para relator do feito o conselheiro Antonio Simões da Silva.
O ministro relator manda expedir mandado de prisão contra o indiciado e dar vista dos autos ao conselheiro Promotor da Justiça, Dr. Francisco Baltazar da Silveira, que deixou de oferecer denúncia, por não achar fundamento legal para o oferecimento, por poder o processo ser instaurado por iniciativa do juiz.
Em data de 10 de setembro o ministro relator manda que se proceda nos termos da lei.
Nesse ínterim, Pontes Visgueiro embarca para o Rio de Janeiro, a fim de apresentar-se para ser submetido a julgamento, no vapor “Paraná”, no dia 6 de setembro, vigiado pelo capitão Tertuliano da Costa e cinco praças do 5º Batalhão de Infantaria, com ordem de não permitir que ele saltasse nos portos de escala.
À chegada do “Paraná”, no dia 20, à tarde, recebe ordem de prisão, em cumprimento ao mandado expedido pelo Supremo Tribunal de Justiça, pelo 1º delegado de polícia, Dr. Francisco Maria Correia de Sá e Benevides, sendo imediatamente recolhido ao Quartel do Corpo Militar de Polícia, na Rua dos Barbonhos, hoje Rua Evaristo da Veiga, onde é entregue ao oficial de estado, o capitão Francisco Pereira Antunes. Aí lhe é apresentada, pelo oficial da secretaria do colendo tribunal, Pedro de Oliveira Coelho, em exercício do cargo de secretário, a devida nota de culpa, no dia seguinte, ficando marcado o dia 26 para ter início a instrução criminal.
Ao sumário fez-se acompanhar de figuras de brilhante atuação forense, os advogados – o senador Francisco Octaviano de Almeida Rosa, político eminente, literato e jornalista, e o doutor Franklin Américo de Meneses Dório, grande jurisconsulto e notável homem de letras, seu amigo dedicado, que lhe insinuou às respostas e ensaiou o depoimento, genro do Visconde de Paranaguá e também seu particular amigo desde os tempos em que exerceu a judicatura na remota comarca piauiense.
O seu interrogatório é feito por escrito, devido ao seu estado de absoluta surdez, funcionando como escrivão do feito o secretário do Supremo Tribunal de Justiça, João Pedreiras de Couto Ferraz.
Perguntado se sabia porque estava preso, confessou imperturbavelmente: “porque matei Maria da Conceição’, declarando à guisa de defesa: “Não era possível viver com esta paixão que me devora, paixão concebida desde o ano passado”.
A resposta do acusado, preparada pelo seu defensor, é apresentada a 23 de janeiro de 1874 e o despacho de pronúncia data de 4 de fevereiro, na conformidade da promoção do Procurador da Coroa, Dr. Francisco Baltazar da Silveira. O crime é capitulado nas sanções do artigo 192 do Código Criminal, para ser o réu condenado no grau máximo das penas desse artigo – a morte, por concorrerem circunstâncias agravantes.
O julgamento do protagonista do crime.
Lances dramáticos do advogado de defesa, com ardis de sofisma
O Dr. Franklin Dória, posteriormente Barão de Loreto, o patrono que compareceu perante o egrégio tribunal, por não se ter apresentado o Dr. Francisco Octaviano, defendeu-o brilhantemente.
Na impossibilidade de negar o fato delituoso, procurou o ilustre causídico contravertê-lo, falseando a verdade, para “arrancar o réu à culpabilidade, à criminalidade, à sanção da lei”, na expressão do não menos ilustre Promotor da Justiça.
Alegou, em defesa, que o seu constituinte aparentava apenas vida regular e metódica, porquanto, na realidade padecia de insônias e de inapetência; que usava abusivamente das bebidas espirituosas e se entregava eroticamente a excessos venéreos, apesar da idade avançada, excitado por afrodisíacos.
Alterava os acontecimentos, para interpretá-los a seu talante, como recurso da chicana advocatória, para fazer crer que se tratava de um caso mais de hospital do que de pretório, no intuito de, ao menos salvar uma reputação adquirida a título precário.
Macula a memória da infeliz vítima, que só achou defesa na opinião pública, taxando-a de bêbeda e de ladra, atributos de que nos autos não há provas.
Invoca, em auxílio à sua argumentação capciosa, até antigas amizades entre as famílias do réu e de alguns membros do tribunal, dizendo: “Há nesta cidade, neste tribunal mesmo, mais de uma pessoa que o tenha conhecido e bem assim a mãe do Sr. Desembargador Pontes Visgueiro”, relembrando que, quando criança, havia o conselheiro Barbosa de Oliveira brincado, em Maceió, com o acusado e seus irmãos Manuel, Maria e Teresa, assim como faz recordar o velho conhecimento, desde São Luís, do réu com o Promotor da Justiça, magistrado no Maranhão.
Terminando a sua defesa com estas palavras exortativas: “Senhores, este homem não é o monstro que a sociedade pintou. Não; ele não saiu do mundo sombrio dos malfeitores, com o coração empedernido pelo vício e pelo crime. Não; o desembargador Pontes Visgueiro é um desgraçado, cuja honra foi posta à prova durante uma longa existência de 62 anos, e que no ocaso da vida, de um momento, sucumbiu a uma paixão impetuosa e tirânica, que eclipsou essa luz divina que irradia o espírito do homem, e se chama consciência”, pede a absolvição do acusado, a quem procura inocentar, como se estivesse perante um tribunal de júri, com juízes de fato, alheios à responsabilidade, estranhos à ética profissional.
Pontes Visgueiro apresenta-se ao plenário trajando apurado rigor, como outrora comparecia às sessões do tribunal, como juiz.
Aparentando calma, abafava, a cada momento, contínuos soluços, enxugando o pranto, que amiúde corria pela face macilenta.
O Supremo Tribunal de Justiça, em sua 23ª sessão ordinária do ano, aos 13 de maio de 1874, desclassificou o crime, para condenar o réu à pena de galés perpétuas, grau máximo do artigo 193 do Código Criminal do Império, pena que foi substituída pela de prisão perpétua com trabalho, nos termos do artigo 45 parágrafo 2º do mesmo Código, por ser o réu maior de 60 anos e nas custas, para ser cumprida a sentença na casa de Correção do Rio de Janeiro, na conformidade do aresto lido na sessão de 16 do mesmo mês, unanimemente votado.
Foram juízes no pleito os ministros, Srs. Conselheiros João Lopes da Silva Couto, Manuel Rodrigues Villares, Antônio da Costa Pinto, Manuel de Jesus Valdetaro, Albino José Barbosa de Oliveira, Francisco de Paula Cerqueira Leite, Manuel Messias de Leão, José Marianni, sob a presidência do conselheiro Joaquim Marcellino de Brito, tomando parte sem voto, o relator do feito, conselheiro Antônio Simões da Silva, não votando, por impedido, o conselheiro Barão de Monserrate, Joaquim José Pinheiro de Vasconcellos, e promotor da Justiça o conselheiro D. Francisco Balthazar da Silveira.
O réu embarga a sentença, pretendendo cumpri-la na Penitenciária do Maranhão, mas os embargos foram desprezados, conforme a decisão proferida em a sessão de 7 de junho de 1874.
O julgamento dos co-autores, fatos e suposições, notas
Aos 10 de outubro de 1873, é oferecida ao juiz de direito do 3º Distrito criminal, Dr. José de Almeida Martins Costa, pelo promotor público, Dr. Martiniano Mendes Pereira, a denúncia contra o co-autor Guilhermino de Sousa Borges e os cúmplices Amâncio José da Paixão Cearense, Antônio Feliciano Peralles Falcão e o preto Luís de Tal, sendo a promoção sustentada brilhantemente com os mesmos fundamentos, em 1º de novembro.
Os denunciados são julgados na sessão do Júri de 29 de dezembro de 1873. Guilhermino e Amâncio são condenados a 8 anos de prisão celular com trabalhos, cada um.
Tomaram parte no pleito, juiz, o Dr. Antônio Augusto da Silva, promotor o Dr. Martiniano Mendes Pereira, advogado de Amâncio o Dr. Francisco de Paula Duarte e advogado de Guilhermino, o Dr. Antônio Martiniano Lapemberg.
Os réus, não se conformando com a decisão, recorrem, sem embargos, a novo Júri, julgados em sessão de 4 de março de 1875. Guilhermino é novamente condenado a 8 anos de prisão com trabalhos, mas Amâncio é absolvido.
Tomaram parte no pleito, juiz, o Dr. Serapião Euzébio d’Assumpção, promotor, o Dr. Celso da Cunha Magalhães, sendo advogados os mesmos causídicos.
Conta o escritor Almeida Nogueira que Pontes Visgueiro havia requerido aposentadoria quando ocorreu o crime. O governo manda ouvir, sobre o pedido, a secção de justiça do Conselho de Estado, que opinou carecer de direito a pretensão, por haver o requerente perdido o cargo, com a condenação.
Entrementes, o ministro da Justiça, conselheiro Duarte de Azevedo, vai fazer uma visita à penitenciária. Lá encontra o ex-desembargador vestido de jaqueta de zuarte, cabelos cortados à escovinha, barba raspada, trazendo presa à cintura uma chapa com o número de sentenciado, trabalhando na oficina de encadernação.
O presidiário solicita a graça de falar com o titular, a quem indaga pela solução dada ao seu pedido de aposentadoria, acrescentando reverentemente: “Sim, porque sou desembargador”, ao que se limitou a escrever o ministro, por ele não poder ouvir: “Foi”.
Esta resposta lacônica, mas incisiva, fê-lo emudecer e baixar a cabeça, acabrunhado.
No Rio de Janeiro tinha por procurador o Sr. José Justiniano Rodrigues, e no Maranhão o Sr. Laurindo José Alves de Oliveira, mas institui testamenteiros o Dr. Gentil Homem de Almeida Braga, Laurindo Justiniano Rodrigues e o Des. Antonio Manuel Fernandes, no testamento feito aos 5 de janeiro de 1875, em que se lê: “Sendo humano e piedoso, e tendo muito amor à justiça e ao próximo, se o meu espírito se desvairou um dia, que perdão poderá desejar dos homens? Quem podia perdoá-lo já não existia”, o qual foi apresentado ao juízo da Provedoria pelo seu procurador.
O fotógrafo Henrique Neves expôs à venda, na Farmácia Normal, dos Srs. Pinheiro e Ferreira, ao Largo do Carmo nº 15-A, retratos de Maria da Conceição, ao preço de 500 réis cada, para o produto ser aplicado na aquisição duma lápide para a sepultura da assassinada.
O festejado literato Gustavo Barroso (João do Norte) conta que, quando menino, morando em Fortaleza, conheceu ali, estabelecido com padaria, na Rua do Cajueiro, um mulato quarentão, de nome Guilhermino, que, na hora da morte, declarou ter sido o empregado do desembargador Pontes Visgueiro, que lhe auxiliara no assassínio de Maria da Conceição.
Em relação ao desaparecimento do sentenciado Pontes Visgueiro da Casa de Correção, correram as mais desencontradas versões: Dizia-se a princípio que, graças à proteção que lhe dispensava a Maçonaria, ele havia conseguido evadir-se para os Estados Unidos, ao que afirmavam outros, para Portugal; outra versão fazia crer ter ele podido fugir devido a influencia do seu amigo íntimo, Visconde de Paranaguá, João Lustosa da Cunha, ministro em diversos gabinetes do segundo império, para homiziar-se na sua antiga comarca piauiense, dizendo-se mais que fora para a cidade de Santa Rita, nos sertões da Baía, hoje Ibipetuba.
Em resposta à carta que lhe dirigiu o Dr. Evaristo de Moraes, disse o desembargador Lucatelli Dória, membro do então Tribunal de Apelação e Revista da Bahia que, quando juiz de Direito da comarca de Santa Rita do Rio Preto, em 1892, exercia ali o vicariato de freguesia, um padre, cujo nome não se recordava, que amigo particular do desembargador Pontes Visgueiro, com ele mantinha correspondência epistolar, de procedência estrangeira, segundo lhe afirmaram diversas pessoas dignas de crédito, conhecedoras dos fatos, como os coronéis Constantino Castro e Afonso Araújo.
Declarou ainda o magistrado baiano que, em conversa a respeito desse acontecimento, com o historiógrafo do Arquivo Público da Bahia, este lhe forneceu algumas notas sobre a vida e a fuga de Pontes Visgueiro.
Disse-lhe o Dr. Silva Campos que em Manaus existiu um português que conheceu intimamente o desembargador Pontes Visgueiro no Maranhão, e que depois de haver corrido a notícia da sua morte, ele o encontrou em Lisboa, com quem conversou, visitando-o depois em sua residência, declaração de que dava testemunho o Dr. Hermenegildo Lopes Campos, médico militar.
Disse mais o Dr. Silva Campos que, segundo a tradição maranhense, o falecimento de Pontes Visgueiro foi simulado, tendo o féretro partido para o cemitério do Caju cheio de pedras, pelo que alguém em desconfiando da trama, procurou abrir o caixão, no que foi obstado.
Consta, no entanto, do registro da secretaria do presídio o assentamento da morte, motivada por lesão cardíaca, no dia 24 de março de 1875, às 8 ½ horas da manhã, sendo o corpo sepultado no cemitério São Francisco Xavier, conforme se vê do “Jornal do Comércio” do Rio de Janeiro do dia imediato.
O brutal crime forneceu tema para apreciações sobre a esquálida personalidade do facínora desembargador: o ministro Viveiros de Castro, em “Atentados ao Pudor” o julgou um criminoso doentio entre os ciumentos; o professor Afrânio Peixoto, em “Criminologia” o inclui entre os dementados caducos.
Estudando a psicose dos criminosos, o Dr. Estácio de Lima, na tese a concurso para professor da Faculdade de Medicina da Bahia – “Capacidade civil e seus problemas médico-legais” – faz referências à nefanda pessoa e o causídico Evaristo de Moraes, que faz a história do crime e um estudo do seu autor, em “Um erro judiciário: o caso Pontes Visgueiro”, obra de curada investigação, o considerou, sob o ponto de vista jurídico, um psicopata sexual.
O Dr. Alfredo Balthazar da Silveira, neto de D. Francisco Balthazar da Silveira, que na qualidade de Promotor da Justiça articulou o libelo sustentando o despacho de pronúncia, capitulando o crime nas sanções do artigo 192 do Código Criminal, pedindo contra o criminoso a pena de morte, refutou a crítica do ilustrado criminalista patrício, que inquiriu de errônea a decisão do Supremo Tribunal de Justiça, condenando o famigerado desembargador.
Como produção literária referente ao rumoroso caso encontram-se “Maria da Conceição, a vítima do desembargador Pontes Visgueiro’, romance histórico de F. R.; a novela histórica da autoria de Lima Rodrigues, publicada na revista “Nação Brasileira”, nº 26, de fevereiro de 1934; uma crônica de Pedro Calmon, com reproduções das cenas da monstruosa tragédia, publicada em “A Noite Ilustrada” de 4 de julho de 1934; Angelo Agostini traçou páginas admiráveis na revista carioca. “O Mosquito”, de 4 de outubro de 1873, com cenas ideais pela sua fértil imaginativa.
Para os precipitados autores e alguns outros, os delitos dessa natureza são antes psicoses próprias da senilidade, pelo embotamento endocrático dos sentidos, cuja etiologia deveria ficar esclarecida, cabendo à casuística e à penalística a exigência do diagnóstico clínico e a interferência jurídica, para saber-se se se trata de um criminoso doente ou de um doente criminoso.
Os fatos provam que sob a influência de um vício, e mais freqüentemente a hereditariedade, as faculdades morais podem sofrer alterações que senão destroem, como no caso da loucura manifesta, as relações do indivíduo, devem ser tomadas em consideração quando se trata de julgar a moralidade desses atos e as suas conseqüências.
Disse Platão ser o crime o efeito e o criminoso a sua causa, devido à má educação e falta de instrução, enquanto que a doença é causa e o doente é efeito, havendo, pois, o delinqüente e o degenerado; o primeiro deve ser julgado e punido, por ser culpado, e o segundo, isolado e curado, por ser molestado.
Fosse estabelecida a premissa de que o crime está para o criminoso como a doença está para o doente, seguir-se-ia não haver doentes e sim doenças, e, do mesmo modo, criminosos, mas somente crimes.
Mas a um assassínio premeditadamente cometido, com rigorosa precisão atrozmente executado, não podem ser dadas interpretações fantasiosas, para a reabilitação da memória do agente que agiu deliberadamente, lúcida e conscientemente, por espírito de vingança.
ASSASSINATO DE MARIA DA CONCEIÇÃO PELO DESEMBARGADOR PONTES DE VISGUEIRO


Depois de se ter despedido de Maria da Conceição uma amiga que lhe acompanhara à casa do desembargador, este convida Maria a entrar num gabinete contíguo, dizendo-lhe que fosse buscar um presente.

Apenas Maria entra no gabinete e senta-se num baú, o cúmplice Guilhermino, saindo de trás de uma porta, segura-a pelos ombros. Abafando os gritos da vítima com uma toalha, o desembargador procura cloroformizá-la, estrangulando-a ao mesmo tempo.

Depois de tão terrível luta, extenuada, descomposta e semi-morta, Maria perde os sentidos. Atirando-se sobre ela o desembargador qual uma fera, morde-a enfurecido.


Sedento de sangue, o feroz assassino acaba com quatro punhaladas de tirar à vida a desditosa Maria da Conceição.
O desembargador e Guilhermino agarrando a infeliz Maria, procuram depositá-la no caixão, porém vendo que este não a pode conter estendida...

Amarram-lhe as pernas com umas cordas que já de prevenção traziam.

Não tendo conseguido fazer entrar o cadáver no caixão, apesar de amarradas as pernas, resolve o desembargador cortas uma delas.

O mesmo faz com a cabeça, agarrando-a pelos cabelos, dum profundo golpe a decepa a fim de colocar mais a jeito no caixão.

Preparado assim o corpo o desembargador cobre-o com cal que Guilhermino fora buscar numa lata.

Porém o desembargador que enterrar novamente o seu punhal no corpo da vítima e faz-lhe uma larga incisão no estômago, por onde saem as vísceras.

Aspecto do corpo no interior do caixão.

MEIA HORA DEPOIS!
Um brinde à saúde do digno e honrado Sr. desembargador Pontes Visgueiro. Hip, hip, hurra!